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Dora Andrade : você sabe quem é ?

Dora Isabel de Araújo Andrade, 37 anos, bailarina e coreógrafa de Fortaleza, CE, é a idealizadora e condutora da Edisca – Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes. Na escola, 239 alunas de famílias pobres, entre 5 e 20 anos, fazem aulas de dança, inglês, História da Arte e da Dança, e recebem assistência médica e odontológica, além de alimentação. As meninas da Edisca já se apresentaram com sucesso em diversas cidades do Brasil e no exterior. A intenção do projeto é, por meio da dança, resgatar o sentido de cidadania desse grupo carente.

Histórico

No final dos anos 80, Dora Andrade e seu grupo de dança começaram a trabalhar com crianças da periferia. Timidamente, promoveram oficinas temporárias em comunidades pobres. Convidaram algumas das garotas para fazer aulas na academia: uma vez por semana, o dia era inteiramente dedicado a elas. Mas não havia continuidade no trabalho e faltavam recursos para investir no programa. Premiado no exterior, o grupo de Dora Andrade recorreu ao então governador Ciro Gomes na tentativa de conseguir verbas para desenvolver projetos artísticos, oferecendo-se para, em contrapartida, promover um trabalho de cunho social com as meninas pobres. Em pouco tempo de contato, os integrantes do grupo se encantaram com as meninas e os bons resultados da promoção atraíram novas interessadas. Dora Andrade sentiu que era hora de iniciar uma atuação estável, que permitisse direcionar o potencial artístico das meninas e, ao mesmo tempo, resgatar a noção de cidadania e direitos humanos entre elas. Aos poucos, a bailarina foi deixando de lado suas aulas particulares para se dedicar exclusivamente às crianças pobres. Fechou as portas de suas duas bem-sucedidas academias de dança. Em novembro de 1991, surgiu oficialmente a Edisca – Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes, fruto de um convênio entre Dora Andrade e o governo do Estado do Ceará. Nos primeiros meses de trabalho, o prédio onde até hoje funciona a escola foi praticamente depredado pelas meninas. Sem conhecimento de princípios básicos de educação e civilidade, elas riscavam as paredes, cuspiam e jogavam chicletes no chão e destruíram os poucos aparelhos e equipamentos que a Edisca possuía. A escola resistiu e tornou-se um sucesso. Iniciou seus trabalhos com cinqüenta crianças e, em menos de seis meses, já acolhia mais de 100 alunas. Nove meses depois da formação das primeiras turmas, estreou O Maior Espetáculo da Terra, uma montagem de dança elogiada pela platéia cearense.

Descrição do projeto

O processo de seleção para ingresso na Edisca se inicia com a abertura de vagas nas três comunidades carentes que a escola escolheu servir: Morro do Teixeira, onde as famílias de pescadores sofrem os efeitos da especulação imobiliária; Bairro do Bom Jardim, região marcada pelo alto número de desempregados, geralmente trabalhadores da construção civil, agravando os problemas de sobrevivência das famílias e empurrando as crianças para as ruas do centro de Fortaleza; e Jangurussu/Conjunto Palmeiras, onde grande parte das famílias é constituída de catadores de lixo, vivendo em estado de carência absoluta. A seleção é feita hoje a partir de uma entrevista com a candidata e com sua família. Os entrevistadores se certificam de que a criança realmente pertence a uma dessas comunidades e de sua real necessidade de participar do projeto. Para avaliar suas aptidões, as meninas participam de uma aula, durante a qual os orientadores observam qualidades como ritmo, coordenação, lateralidade etc. As selecionadas freqüentam aulas experimentais durante um mês, quando se verifica sua capacidade de adaptação. Nessa fase, as famílias são visitadas pelos profissionais da Edisca, que checam outras informações sobre a candidata, como aproveitamento escolar – todas as alunas da Edisca têm que freqüentar a escola formal -, comportamento, condição econômica da família, como é a casa onde mora, de que material é feita, se é alugada, se fica em terreno próprio ou invadido, os problemas da comunidade – como drogas, assaltos e outras formas de violência. Faz-se também um levantamento sobre questões relativas à saúde – como doenças mais comuns, casos de alcoolismo na família, vacinação e cuidados com os dentes. As respostas dos pais a esse questionário não eliminam as candidatas, mas servem como ponto de referência e também como um banco de dados das populações atendidas. A situação financeira da família funciona em casos de empate entre candidatas – quanto mais carente, maior a chance de se obter uma vaga. O processo de seleção, rígido e longo, reduz a possibilidade de problemas futuros. Da mesma forma, a escola exige grande dedicação das meninas. Em caso de repetência na escola formal, a aluna deixa de se apresentar no espetáculo de dança daquele ano. Se repetir novamente, terá que abandonar a Edisca. A filosofia que norteia essas orientações é a de que as meninas devem aprender a se dedicar a uma atividade que lhes dê prazer e a lutar pelo que querem. “Quando nós as levamos para a Itália, quase num final de ano, elas ficaram dezoito dias sem freqüentar as aulas e nenhuma delas repetiu”, conta Dora Andrade. “Nem sempre é fácil manter a disciplina necessária para que a escola funcione, mas as meninas precisam saber que tudo depende de aplicação.” A Edisca tem desde então servido de referência como um trabalho social com pretensões claras, bem fundadas e resultados palpáveis. A cada espetáculo, o grupo de dança vem conquistando novos públicos, o que facilita a obtenção de patrocínio. Para manter o padrão e avançar nos resultados, o regime da escola é rigoroso. Os orientadores controlam até mesmo o jeito como as meninas se vestem e se comportam no dia-a-dia. “A dança é uma arte que requer dedicação”, diz Dora. “Temos que mostrar isso a elas, porque são muito negligenciadas e precisamos fazer o papel de mãe. Além disso, a escola se baseia em padrões profissionais, e assumir responsabilidades é positivo.” Nas aulas de dança, as meninas desenvolvem a disciplina e a capacidade de concentração. Mas a escola se tornou também um centro de convivência, onde as bailarinas encontram espaço para o seu desenvolvimento integral. Na Edisca, as meninas são estimuladas a fortalecer os laços afetivos com suas famílias, uma forma de escapar da vida nas ruas, e a freqüentar uma escola formal para conquistar espaço na sociedade. A Edisca oferece ainda apoio na solução de seus problemas cotidianos, como dificuldades de relacionamento na escola e de aprendizagem, dúvidas relativas a questões sexuais, aceitação de si mesmas e do grupo, higiene pessoal e prevenção de cáries. As meninas – que freqüentam a Edisca três vezes por semana durante 3 horas – participam de aulas teóricas de História da Arte e da Dança, oficinas de teatro, mímica, canto coral, artes plásticas e palestras educativas, para as quais podem trazer seus familiares. São atividades que ajudam a desenvolver sensibilidade, criatividade, autoconfiança e consciência crítica. Elas tomam também aulas de inglês, fazem ali uma refeição diária e recebem atendimento odontológico completo, vale- transporte e roupas para as aulas e espetáculos. Os professores produzem ainda material pedagógico baseado na realidade das crianças e adolescentes, do qual constam desde cartilhas com receitas caseiras para matar piolhos, tratar coceiras e manchas na pele até cartazes ilustrativos sobre anatomia, com descrição da musculatura e seus movimentos na dança. As aulas práticas incluem a dança clássica, segundo os métodos Royal e Russo, e a contemporânea, com as técnicas de Limon, Graham e Labam. O resultado do trabalho foi levado ao palco com a montagem de quatro espetáculos de sucesso, apresentados no Theatro José de Alencar, de Fortaleza. Em 1993, setenta meninas do grupo fizeram uma turnê pela Itália, com boa acolhida.

Importância da candidata para a existência do projeto

Idealizadora da Edisca, Dora Andrade dedica-se integralmente ao trabalho proposto. Sob sua orientação, a escola segue rigidamente algumas idéias básicas, como a de melhorar a qualidade de vida de suas alunas. O grupo dedicou nove meses ao desenvolvimento de planos e projetos para, há dois anos, com a ajuda do governo do Ceará, montar uma cozinha modelo, onde as bailarinas almoçam nos dias de aula e ensaios. “Foi uma vitória pessoal de Dora”, afirma a bailarina Claudia Andrade, irmã de Dora. “Ninguém aqui acreditava num bom resultado, mas ela passou meses batalhando, até conseguir o que queria.” O cardápio foi planejado por Dora com um grupo de nutricionistas para garantir às meninas, em cada refeição, o fornecimento dos nutrientes necessários às atividades, sempre muito intensas. Levou-se em consideração também que, em casa, elas raramente recebem uma alimentação satisfatória para compensar tanto esforço. “A cozinha da Edisca é considerada exemplar e faço questão de que elas comam doces variados e até bolo com chantilly todas as semanas. Elas merecem”, diz Dora. Sua atuação não se limita a garantir aulas, alimentação e assistência às alunas. Dora se preocupa em valorizar também o trabalho dos professores e funcionários. Durante os cinco anos de funcionamento, a Edisca tem-se equilibrado em um orçamento apertado, que raramente chega a 20 000 reais por mês – total insuficiente para alimentar as 239 alunas e os funcionários, garantir assistência médica, psicológica e dentária às meninas, fornecer material de apoio, uniformes de dança, vale-transporte e, ainda, cuidar da manutenção do prédio. Além de receber verba do governo do Estado do Ceará, a Edisca conta com o apoio do Instituto Ayrton Senna e do Banco do Estado do Ceará, mas as doações são insuficientes. Os professores e assistentes realizam um trabalho que se aproxima do voluntariado – não ganham por horas extras trabalhadas, não possuem seguro de saúde nem têm benefícios garantidos. Dora quer modificar esse quadro, porque acha que quem trabalha como eles merece ser recompensado. Ela gostaria também de aumentar o número de meninas atendidas pelo programa – de 239 para pelo menos 300 no próximo ano. Para dar conta dessa mudança, Dora quer ampliar o quadro de profissionais, contratar um advogado, um contador, esticar o tempo de atuação da equipe de assistentes sociais, psicólogos e professores, e contratar um técnico para trabalhar no computador e organizar as informações sobre as alunas. Hoje, cada funcionário da escola exerce pelo menos três funções e muitas vezes é improvisado em cargos para os quais não está qualificado.

Capacidade do projeto de oferecer soluções

A realidade das bailarinas da Edisca é muito difícil. É comum encontrar entre elas algumas que são ou foram espancadas pelos pais, outras que, apesar de muito jovens, apresentam problemas dentários sérios, que desconhecem cuidados básicos de higiene e cujos exames médicos detectam a presença de vermes e piolhos. Mas a escola se orgulha de exibir dados surpreendentes, quando comparados com aqueles obtidos nas comunidades com as quais trabalha. Nos cinco anos de funcionamento, nenhuma das freqüentadoras da Edisca saiu de casa para morar nas ruas, ficou grávida ou se envolveu com drogas ou álcool, caminho comum para as crianças dessas regiões carentes de Fortaleza. As alunas já não apresentam com tanta freqüência problemas dentários, como cáries. Além disso, grande parte das bailarinas que começaram com a escola continua comparecendo às aulas. A intenção da escola não é formar bailarinas profissionais, ainda que isso possa acontecer, mas ajudar as pequenas bailarinas a resgatar sua auto-estima, a cuidar bem de si mesmas e a se comunicar melhor com sua comunidade e com o mundo, para que possam pensar num futuro melhor do que poderiam esperar. Uma das primeiras alunas da Edisca, Verônica Costa Silva, está dando aulas na escola, rompendo uma eterna cadeia de desemprego e subemprego em sua família. “A escola me mostra todos os dias que tenho condições de crescer, em todos os sentidos”, diz Verônica. Outras duas alunas estão se preparando para fazer o vestibular no final do ano, fato inédito em suas comunidades. Mas, por saber que nem todas as meninas poderão se tornar grandes bailarinas ou entrar para a faculdade, Dora montou um novo projeto para preparar as adolescentes para o mercado de trabalho. Conseguiu bolsas de estudo para um curso que treina os alunos para atendimento ao público, promove o relacionamento pessoal no trabalho e ensina computação. Dora quer estender o programa a alunas acima dos 13 anos. A bailarina também está atrás de verbas para a reforma da nova sede da escola. Já conseguiu a casa, e o projeto foi feito gratuitamente por um arquiteto de Fortaleza. Mas é preciso arrecadar pelo menos 50 000 reais para realizar as obras. Além das salas de aula, a nova Edisca terá uma biblioteca e uma videoteca e contará com o apoio de um pedagogo para estimular entre as meninas o hábito da leitura. A sede terá ainda um consultório dentário para atender às alunas e suas famílias, e salas de aulas de artes, música e inglês. A Edisca quer expandir sua atuação com a promoção de cursos de culinária para as mães das alunas e, aproveitando o contato, discutir questões importantes no dia-a-dia dessas mulheres. A intenção é fornecer uma qualificação profissional, tirá-las de dentro de casa e ajudá-las a redescobrir e a rediscutir o mundo. Por meio dessas aulas, as mães poderão manter um vínculo maior com a escola e com suas filhas. Uma característica interessante da Edisca é que a escola faz um trabalho preventivo – não espera que as meninas cheguem a uma situação de risco para depois recuperá-las. Mas, exatamente por adotar essa filosofia, nem sempre é fácil conseguir ajuda para levar o programa adiante. “Grande parte das verbas de organizações nacionais e internacionais é destinada a tirar as crianças das ruas”, explica Dora. “Isso é importante, mas precisamos evitar que elas cheguem às ruas. Depois, é muito mais difícil trazê-las de volta.”

Impacto do projeto

O trabalho de Dora Andrade e seu grupo tem trazido resultados de diversos teores. Os limites de disciplina que as meninas encontram na escola servem de estímulo para adotar um comportamento responsável. O nível de desistência é baixíssimo, quase nulo. As pequenas bailarinas só deixam a Edisca por questões que independem de sua vontade. Quando o governo do Estado do Ceará cortou a verba para o vale- transporte, no ano passado, por exemplo, 25 meninas deixaram de freqüentar a escola por falta de condições financeiras para a sua locomoção. O resultado aparece também no palco. Jangurussu, uma das montagens de maior sucesso do grupo, é um espetáculo vigoroso e bem cuidado, que retrata as dificuldades cotidianas das garotas. Conta histórias das pessoas que vivem do lixo no aterro que leva esse nome. Mostra a dor, a fome, a miséria e a exclusão de personagens que fazem parte do dia-a- dia das bailarinas. Jangurussu chamou a atenção dos participantes do Pacto de Cooperação, ocorrido em maio, que decidiram promover uma campanha para estimular empresários a direcionar 1% do que pagam ao Imposto de Renda a fundos municipais e estaduais para a criança e o adolescente. A lei que prevê essa possibilidade existe desde 1993, mas era pouco conhecida.

Excelência do trabalho

O trabalho da Edisca tem emocionado muita gente. “O projeto é de importância vital na restauração da cidadania dessas meninas”, considera Leiná Carbogin, responsável pela área de promoção de direitos e prevenção de riscos da Unicef em Fortaleza. “Nós apoiamos e divulgamos a Edisca como um projeto-modelo.” A atriz Beatriz Segall, durante uma temporada em Fortaleza, conheceu o programa e enviou uma carta ao governador Tasso Jereissati, pedindo que o Estado ajude a ampliar o projeto. “Iniciativas assim dão a impressão de que o Brasil é um país onde se pode viver e crescer muito bem”, escreveu Beatriz. A presidente do Instituto Ayrton Senna, Viviane Senna, costuma destacar que o Edisca é, entre os trabalhos apoiados pela entidade, um dos que mais a emociona. “Nunca na minha vida, e falo isso com a noção exata do que significa, um espetáculo me tocou tanto”, comentou o produtor e coreógrafo Genilson Pulcinelli no Jornal do Brasil, após a apresentação do espetáculo Jangurussu, durante o Seminário contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, realizado em Brasília, em abril. Ele admite que chorou durante a apresentação. “Tive vergonha de tudo o que não fiz na minha vida, de nunca ter conseguido fazer o que a Dora Andrade faz.” O trabalho da Edisca foi elogiado também pela presidente do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes de Brasília, Maria Lucia Leal, organizadora do Seminário: “É um exemplo de reinserção de crianças e adolescentes na sociedade por meio da arte”. O presidente do Conselho Municipal de Defesa das Crianças e dos Adolescentes de Fortaleza, Sílvio Varoni de Castro, destaca que a Edisca usa a arte para recuperar algo maior nas meninas. “É um trabalho sério, os espetáculos são maravilhosos, e os resultados provam que as pessoas carentes têm muito a dizer; é só encontrar uma chance.” Sílvio, que também é gestor do Fundo Municipal para a Criança e o Adolescente, está estudando formas de parcerias e convênios para ajudar o programa.

Vida da candidata

Filha de uma professora universitária e de um advogado, a cearense Dora Andrade sempre se preocupou em levar a dança às comunidades com poucas chances de aproximação com as artes em geral. Quando voltou de uma temporada nos Estados Unidos, entusiasmou-se diante da possibilidade de divulgar a dança clássica em centros onde não era conhecida. Escolheu a cidade de Sobral, no Ceará, e lá montou uma escola particular de balé. Além de atender às filhas das famílias ricas da cidade, Dora dava aulas de dança e palestras de cunho cultural também na periferia, apresentando-se para platéias que jamais haviam tido contato com esse tipo de manifestação artística. Na escola, Dora montava festas para crianças, carentes ou não, com espetáculos de dança, shows de palhaços e atrações musicais. Nessa mesma época, Dora montou um grupo para promover a dança em locais onde ela não é comumente vista, como cadeias, asilos, em pequenas cidades no sertão, nas praças e nas praias. As montagens ofereciam ao público uma oportunidade de reflexão sobre o homem e sua presença no mundo. Há catorze anos, criou em Fortaleza o Grupo de Danças Dora Andrade. De lá saíram espetáculos pautados pela sua preocupação com as injustiças e desigualdades sociais, que a bailarina diz ter herdado de sua mãe, a primeira mulher a dirigir um asilo de mendigos em Fortaleza. Desde cedo, ela realizava tarefas como cortar as unhas e os cabelos dos moradores de rua, apoiando-os em suas dificuldades. Trabalhou também por um ano com filhos de hansenianos e, após um curso no Rio de Janeiro, passava as madrugadas de sexta-feira de plantão em hospitais, para ajudar em partos de mulheres indigentes. Em 1991, montou a Edisca e passou a se dedicar totalmente ao programa com a ajuda da irmã, Claudia Andrade. Dora coordena as atividades da escola, assina as coreografias, orienta o processo de seleção e corre atrás de verbas para novos projetos. Separada há dois meses, Dora sempre sonhou em ter uma filha, mas nunca conseguiu engravidar.

Currículo

Dora Andrade freqüentou aulas de piano e línguas quando criança e, aos 10 anos, decidiu se dedicar ao balé. Estudou dança e trabalhou como coreógrafa em Fortaleza, Brasília, Curitiba e nos Estados Unidos e na França. Teve uma carreira de sucesso como bailarina, coreógrafa e professora de dança.

Comentários da candidata

Fala-se em cidadania como se fosse algo que cai do céu na consciência das pessoas. Para mim, cidadania é uma forma de se sentir possível, de acreditar que você pode realizar seus sonhos, que pode batalhar para chegar aonde quiser. Esse processo começa no corpo. Mostramos às meninas que é possível ser limpa, saudável, sem doenças e cáries. Trabalhamos também com as famílias, porque muitas vezes as mães argumentavam que, apesar de não ter dentes, elas estavam casadas, com filhos, e que, afinal, os dentes não fazem tanta falta assim. Então, eu as chamava para tirar fotografia e elas, envergonhadas, cobriam a boca desdentada. Assim, uma das tarefas mais importantes da Edisca é reforçar a auto-estima das meninas. Hoje nós vemos que elas se expõem mais, se comunicam melhor e se relacionam umas com as outras de forma muito mais integrada. Os trabalhos sociais em geral são assistencialistas, muitas vezes realizados em causa própria, pensando pouco no desenvolvimento das pessoas. O problema é que o trabalho social sério é um poço sem fundo. Antes, a gente só dava aulas de dança; depois começamos a perceber que, se as meninas não se alimentassem, não tivessem boa saúde, não poderiam nem mesmo se desenvolver adequadamente, quanto mais dançar. Então, montamos a cozinha e começamos a servir refeições. Passamos a informá-las sobre cuidados corporais básicos, a dar reforço escolar, porque a escola pública é de péssima qualidade, a promover palestras sobre temas importantes, de interesse das meninas. Elas não sabem a quem recorrer para informar-se sobre sexo ou transmissão de doenças infecciosas, por exemplo. Em certos momentos fico angustiada, porque o trabalho não termina nunca, sempre há algo mais para fazer. Essas meninas são absolutamente carentes e nós acabamos fazendo o papel de família, escola e amigos – tudo o que elas não têm ou têm pela metade fora daqui. Fui muito criticada nos jornais quando trouxe uma amiga para dar aulas de etiqueta para as bailarinas, antes de viajarmos para a Itália. Diziam que eu estava aburguesando as meninas. Agora eu pergunto: por que elas não têm o direito de comer como gente, segurar o garfo e a faca como todo mundo, sentar reta na cadeira, tomar suco sem fazer barulho? Por que elas têm que parecer bichos? Comer como gente não é noção de cidadania? É o mesmo quando promovo recitais de música clássica para as meninas e suas famílias. Essas pessoas têm o direito de ouvir o que é bom, o que os outros ouvem. Ou será que, só porque são pobres, estão proibidas de ouvir boa música? Minha intenção não é exatamente formar bailarinos profissionais. Mas eu adoto extremo rigor no trabalho com as alunas, como se fôssemos todos profissionais. Isso valoriza o que elas fazem e as torna conscientes de que todos temos que batalhar para que o resultado seja maravilhoso. Durante os ensaios, passamos horas na escola e poucas vezes escuto reclamações. Os espetáculos são o momento maior da Edisca; as bailarinas adoram e se dedicam totalmente ao trabalho. É claro que o resultado não pode ser comparado ao de grupos profissionais, integrados por bailarinos adultos que vêm dançando, ouvindo música clássica e assistindo a espetáculos desde criança. Mas eu me recuso a aceitar quando dão ao programa um caráter exclusivamente social. As meninas são carentes, mas estão aqui para dançar e não para que a gente sinta pena delas. Temos que ter orgulho do que elas vêm conseguindo fazer. Essas pequenas bailarinas se tornaram uma referência nas comunidades onde moram. Na última seleção, tínhamos cinqüenta vagas e apareceram 800 candidatas, o que demonstra que o projeto tem uma aceitação imensa. É difícil que as meninas percam a referência da própria realidade, que é muito forte. Mas quero que elas sonhem e sintam que podem mudar essa realidade. Talvez não consigam solucionar o problema do alcoolismo do pai, mas podem sair do ciclo que empurra as famílias para essas formas de fuga, evitando casar-se com um alcoólatra ou envolver-se com drogas e drogados. Dança não é só virtuosismo, dietas e exercícios; ela pode ser usada para que as pessoas se redescubram, para criar novos horizontes. A dança pode ganhar um aspecto mais humano sem perder a função de espetáculo cultural. A melhor coisa é saber que todas as meninas estão bem nutridas, felizes, inteligentes, sonhando e realizando seus sonhos. Elas têm um brilho no olhar que muitas vezes não vejo em outras meninas, pobres ou ricas. Para mim, isso é o mais importante.

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